A maternidade e o sentimento de solidão

Pós-Parto | 28/04/2023

O tempo do pós- parto é um tempo de excesso. A mulher se desdobra em muitas: tem que se haver com as mudanças no próprio corpo depois da gestação e parto, com a dor que resta de todo processo, com o começo da amamentação, que mais uma vez envolve seu corpo e representa uma exigência nada pequena. O peito dói com a apojadura, ingurgita, o mamilo racha. Seu corpo agora é outro, outra forma, o abdômen não é mais o mesmo, a genitália fica muito sensível. A possibilidade de descanso é pequena, o filhote deve mamar de duas em duas horas, às vezes em intervalos menores. O dia se estende pela noite. O bebê chora, precisa de colo, muito aconchego e disponibilidade da mãe: o nascimento do ser humano introduz uma mudança difícil de ser administrada e chama por ajuda e proximidade. A gravidez foi encerrada, mas há outra que se inicia agora fora do útero, tanto para o bebê quanto para a mãe. Há que gestar um novo modo de viver.  As pessoas em torno, companheiro, eventuais outros filhos, parentes esperam uma mulher como era antes, mesmo não  sendo mais; pedem pela volta de uma normalidade que agora tem que ser recriada. A vida é outra, radicalmente outra. Quem entende dessas turbulências, o trabalho psíquico e o esforço físico dessa empreitada é, quase sempre, uma outra mulher nas mesmas condições. Quem está fora desse ciclo, ou nunca esteve nele, tem dificuldade para alcançar sua agudeza e profundidade. A mulher é lançada numa experiência que a toma no corpo e na alma.

O tempo do pós-parto é um tempo de solidão. Como e com quem dividir esse momento? A maior parte das mulheres não tem com quem falar, não tem quem as ouçam na sutileza e no abismo do seu embaraço. Peço emprestada a fala de uma mulher-mãe atendida por uma enfermeira quem fez, delicadamente, a anotação no seu relatório, que agora conto: diz, com economia de palavras, de um modo simples e direto: pensa em dar mamadeira a seu filho porque ao amamentar à noite, se sente muito sozinha. Conseguimos vê-la sentada num canto da sala, ou do quarto, na penumbra, escuro lá fora, tudo e todos dormindo em silencio, o bebê sôfrego, tão necessitado, e ela ilhada do resto do mundo.

Pensemos. Mas ela não está sozinha, está com o bebê. Sim. No começo, logo ao nascer, é ainda difícil estabelecer um par. Ainda não há dois. Há duas pessoas em presença, mas muito longe um do outro. Estranhos. O laço, a parceria, o par, a cumplicidade, os segredos em comum ainda não se estabeleceram. Há sim o compromisso e responsabilidade da mulher de cuidar e responder ao filho. Se o companheiro estivesse ali com ela seria mais fácil. .. Dar-se-ia uma divisão, um mínimo de parceria, um reconhecimento. Mas ele dorme. Se usasse mamadeira ficaria menos implicada no que é por ora tarefa, cumprimento de dever. Ainda não há prazer e reciprocidade.

Não há escolha que se faça na vida que não inclua uma contra escolha. Ter filho é uma decisão que envolve afetos ambivalentes: quero, mas também não quero. Querer bem o filho é um fato, mas também o pensamento de como seria mais calmo e fácil não ter o filho. Pensamentos inconciliáveis de um lado, mas por outro, administráveis. Há momentos em que não é possível se imaginar sem esse filho, e outros que a vontade é sair pela porta da frente, sozinha e não voltar mais. Humano, completamente humano. Mas a ambivalência é vivida no escurinho de nossa consciência e exige muito trabalho psíquico. Trava-se um verdadeiro embate interno e a perplexidade diante do fato de que não se podia jamais imaginar que fosse ser tão difícil. Trabalho solitário.  Mas, quando a mulher resolve ter o segundo, terceiro filho, há uma indicação que esse dramas emocionais são passiveis de transformação e articulação. Administra-se. Custa, mas administra-se.

A solidão da maternidade ainda se revela no fato de que não poucas mulheres cuidam sozinhas do bebê por muitas horas seguidas. Às vezes por dias seguidos. Difícil, diríamos até contraindicado. O bebê exige que a mãe mergulhe num universo muito primitivo onde fome, sono, borrão na separação e diferença entre os dois, terror de abandono, comunicação precária, dúvidas e inseguranças nas ações, imprecisões de toda ordem ficam em primeiro plano. A presença de um terceiro, adulto, facilita bastante os cuidados. Quando podem, casais se hospedam na casa dos pais e lá passam o primeiro mês da vida do bebê. Ótima iniciativa, mas que tem ficado cada vez mais rara. O simples fato de poder conversar com outro adulto, trocar impressões, facilita bastante.

Há ainda uma terceira situação que coloca a mulher mãe numa atmosfera de solidão. Há tantas e mais tantas técnicas, conhecimentos sobre todos os aspectos dos cuidados, um oceano inteiro de fonte de informações que a decisão do que e como fazer fica difícil. Na melhor das hipóteses a mulher decide observar seu bebê, levar em conta as respostas às suas iniciativas e assim decidir com base na sua própria experiência. Se confiar no pediatra e este oferecer apoio firme, diretrizes claras, melhor ainda. Seguir um blog de orientação que lhe parece ponderado e consistente também pode ajudar, porque de fato os cuidados com o bebê geram muitas questões e dúvidas. Há um ponto central que é preciso ressaltar: o bebê embora saudável é frágil e sensível. Vê-lo sentindo cólicas, com o nariz entupido, pele assada, devolvendo o leite, engasgando, não é simples. E são acontecimentos que pedem solução rápida.  E a resposta ou sugestão pode demorar. A especialista no blog, a roda de conversa substituem às vezes o adulto que não está presente e com quem poderíamos dividir ideias e opiniões e decidir.

Depois dos três primeiros meses de vida do bebê, a tarefa fica um pouco mais fácil para ambos: mãe e bebê se conhecem melhor, já estabelecem um diálogo mais explícito e compreensível.  Uma rotina de cuidados fica mais definidamente desenhada. Tudo fica um pouco mais conhecido e previsível. Um pouco mais. Os desafios e as perguntas vão mudando.

Há passagens na nossa Roda de Conversa, que apesar de tantas aflições, dúvidas, relatos de exaustão, são carregados de bom humor. Uma das participante conta que deixou o bebê por uma hora, hora e meia com o pai. Voltando encontrou-o exausto, e a partir daquele dia ele parou de pedir uma coisa depois da outra, como nos velhos tempos: e a torta de palmito, se tinha visto a chave de casa, a cama desarrumada? Há outros companheiros que explicitam com todas as letras que é mais fácil trabalhar do que cuidar do bebê.

Na nossa Roda de Conversa há longos diálogos sobre ter ou não um segundo filho. É interessante porque não só as mulheres ponderam sobre o tema, mas os homens (pais) também. Eles avaliam como a mulher fica implicada e tomada pela tarefa dos cuidados, e o sofrimento que vem junto. Mãe e pai usam a própria experiência, enquanto lembrança de quando eram pequenos,  com ou sem irmãos, a relação com irmãos na fase adulta. Conseguem deslocar-se no tempo, para trás e para frente na ponderação para responder sobre ter ou não mais filhos. Filhos hoje ou há 30 anos representa uma diferença. Cada época compreende suas dificuldades e desafios. A mulher como participante no mercado de trabalho é uma das dificuldades; a organização das famílias é outra (avôs, tias não estão necessariamente próximos e disponíveis).

Mas uma coisa é certa: mulheres e homens são transformados pela maternidade e paternidade, e passam a desenvolver uma nova visão de mundo. O que é alvissareiro.

Eva Wongtschowski é psicanalista, participa das Rodas de Conversa do Gamp21 e realiza atendimento clínico, presencial e online.