Um trabalho psíquico em nada pequeno
Cito a frase de uma participante da Roda de Conversa (0 a 3 meses) ao agradecer uma informação dada por outra participante: “Ah! obrigada. Ando meio lesada, desculpa. Obrigada pelas informações”. Ela agradece a gentileza da parceira de Roda ter tido calma e suficiente compreensão pelo fato dela não ter entendido a mensagem na primeira vez e ter solicitado a informação uma segunda vez.
Não, nossa participante não está lesada! De modo nenhum. Ela está no puerpério, e está cuidando de um bebê. Essa sensação de estar” lesada”, pensando devagar, um tanto dispersa, tem uma função central na condição mesma para que a mãe (ou cuidador) possa fazer contato e acompanhar um bebê.
Esse tema ocupa páginas e páginas de livros que se dedicam a pensar a questão da maternidade. E não só psicanalistas, psicólogos, médicos, enfermeiros escrevem sobre o tema bem como mulheres-mães, mulheres-mães-escritoras.
Rafaela Carvalho escreveu um livro onde conta sua experiência com o nascimento de 4 filhos. O próprio título responde bem à observação da participante da Roda: “60 dias de Neblina”. A imagem usada para o título é esclarecedora: neblina vem a ser uma nuvem composta de pequenas gotas de água que pode vir a reduzir a visibilidade horizontal. A mulher tem seu campo de observação diminuído porque fortemente focado no bebê, e o que fica mais ali na frente é desconsiderado neste período.
O bebê, ao nascimento, deixa o ambiente uterino – protegido pela bolsa das águas, pela alimentação contínua, pela presença constante da mãe – para um espaço, num primeiro momento, adverso e hostil. Sons, movimentos, cheiros, luz, sensação de fome nunca antes sentida, atritos na pele, mudanças bruscas de toda ordem. Tamanha quantidade de estímulos e sensações vindas do próprio corpo e exteriores a ele SEM um psiquismo minimamente organizado para pensá-las. Os pais fazem inicialmente essa função para o bebê, oferecendo palavras, criando sentido para o que acontece com ele. É esse cuidado que vai garantir sua sobrevivência apesar da sua condição precária diante de tantas novas exigências.
Do lado do bebê muito susto, angústias e medo de não existir mais. Do lado dos adultos muita disponibilidade e persistência para providenciar, a cada vez, ajuda para conter e protegê-lo destas vivências. Fazer par com o bebê a cada vez, e mais uma vez acolhê-lo, dar um sentido ao que ele pede, e tentar sempre mais uma vez. Criar um caminho de comunicação que vai se transformando todo o tempo, ora aproxima a mãe do bebê, ora a coloca muito afastada, ora consegue acalmá-lo, ora não consegue. A dependência do bebê, não só pelos cuidados com o corpo, mas mais do que isso, a dependência de existir pelo olhar e pela aposta da mãe de quem ele poderá vir a ser. E só quando a mulher (ou quem se responsabiliza pelo bebê) fica “lesada” que ela se torna habilitada a responder ao filho. Implica em um trabalho psíquico em nada pequeno.
Winnicott, importante pediatra e psicanalista inglês (1896-1971) escreveu:” a mulher grávida SADIA transforma-se em mentalmente “ENFERMA” pouco antes de dar à luz e algumas semanas após o parto”. E continua, a saúde do bebê está na dependência da mãe entrar e sair desse estado, que ele vai chamar de “um estado tão especial de ser”.
A mulher, tal qual o bebê, fica exposta a um excesso de estímulos vindos de dentro e de fora. A gestação, o parto, a amamentação exigem um intenso trabalho psíquico para serem sustentados. A mulher precisa dar conta de si para poder então dar conta de cuidar do bebê. Ao homem cabe também um esforço de reorganização dada a mudança radical que o nascimento de um bebê introduz.
Monique Bydlowski psicanalista, denomina este período da maternidade de “loucura normal”. Ela concebeu uma tese, a partir da sua extensa prática clínica, que vem de encontro com a observação da nossa participante da Roda. As mulheres, nos primeiros meses da maternidade se retiram, um tanto, do mundo externo, se tornando especialmente permeáveis às lembranças do passado. As mães buscam essas lembranças para reforçar um repertório que lhes permita fazer par com o filho(a). A capacidade de comunicação do bebê é ainda muito pequena e difícil de ser lida. Não poucas vezes a mulher se assusta com o que lhe vem à cabeça porque está em busca de sensações que ficaram lá no passado. Esse trabalho psíquico cria instabilidade e vai exigir um esforço de realinhamento: quem ela é hoje e quem foi ontem.
Reproduzo aqui um segundo relato de uma participante da Roda: “Essa madrugada o bebê acordou gritando, desesperado. Quanto mais eu queria que ele se acalmasse, mais ele chorava. Respirei fundo com ele no colo, com a cabeça no meu peito, até eu ficar mais calma. Só assim ele foi se acalmando, ofereci o peito para aconchegá-lo ainda mais, e ele pôde dormir. Cada dia uma nova loucura e aprendizado nessa vida de mãe”. As mães são muito boas psicanalistas.