Para qualquer ramo da atividade humana há uma “deontologia” organizada, que vem a ser uma espécie de ciência do dever e da obrigação. Para exercer um ofício, um trabalho, se estabelece o que é moralmente necessário para exercê-lo e tem a função de orientar não só o que, mas como deve ser feito, realizado. Cozinhar, plantar, exercer a medicina, ser ator, fazer móveis, fabricar velas, para cada uma dessas atividades há um rol de regras mínimas para que o trabalho dê conta de sua finalidade. A “deontologia” na sua definição compreende dois aspectos: o prático (como fazer, ações necessárias para alcançar o objetivo), mas também o moral (não só como fazer, mas como fazer levando em conta regras morais vigentes); poderíamos acrescentar a questão ética envolvendo a consciência de cada um, para além do que é ditado pela moral, por aquilo que é consensual num determinado grupo, isto é, como cada um decide exercer um trabalho ou função de acordo com a escolha do que considera digno e correto.
Assim, o que é prescrito (pré-escrito) para uma atividade, qualquer que seja, é organizada por uma pessoa ou um grupo de pessoas que, na melhor das hipóteses, entraram em acordo e decidem como essa atividade deve ser realizada. O que vem primeiro, seguida por outra ação, assim sucessivamente. E isso vale para práticas das mais simples às mais complexas.
Vocês conhecem a chamada “greve de zelo”? Nesta greve, tudo é rigorosamente realizado de acordo com o prescrito, com o que foi previamente determinado como necessário para realizar bem o trabalho. Há um excesso de cuidado e capricho na prestação do serviço, tudo é realizado com grande meticulosidade de tal modo que toda a produção, ou realização do que quer que seja, é, muitas vezes, atrasada causando prejuízos consideráveis. Nos aeroportos, as greves de zelo formaram filas infindáveis, pois, afinal, os funcionários resolveram trabalhar como foi previamente determinado.
Se o prescrito, previamente determinado, não for reinventado, readaptado, reinterpretado por aquele que o realiza, o trabalho se torna sofrido, árduo, pelo simples fato de o bom trabalho ser aquele onde cabe nosso jeito pessoal, nossa marca própria, aquela pitada única. Daí o primeiro trabalho ser chamado de morto, e o segundo de vivo.
Ouvi a descrição de um profissional que trabalha na produção de objetos de acrílico: cada funcionário tem uma cadeira alta, e embaixo de cada cadeira há várias prateleiras onde o trabalhador organiza seus instrumentos. E ele conta, entre orgulhoso e espantado, que com o tempo cada cadeira e suas prateleiras serão organizadas de um modo completamente diferente de qualquer outra. Isto é, a cadeira fica rigorosamente personalizada.
Você até pode seguir pari passu as instruções de como fazer uma boa sopa de lentilhas, mas chega sempre a hora em que você decide por mais um pouquinho disso ou daquilo, e por retirar a sugestão de um ingrediente. A sopa vira a sua sopa.
Afinal, onde queremos chegar com essa conversa? Nos cuidados com os bebês. Acabamos de receber um vídeo, enviado por uma participante da nossa Roda de Conversa, cujo título é “Educadora Parental no Instagram”. Torcemos o nariz, pensando: lá vem uma aula de como fazer “certo”. A educadora em questão conta como resolveu o problema de ter um bebê e conseguir, apesar de sua condição de mãe de uma criança de 7-8 meses, tomar o seu banho! Ela sugere o seguinte: coloque uma bacia com água no chão do Box e dentro dele seu bebê. Enquanto ele brinca com a água, ela toma calmamente seu banho – uma autêntica resolução de problemas, um trabalho vivo. Inventou para si mesma uma saída. Há pouco tempo uma outra participante enviou um áudio – onde ela conta minuciosamente sua forma de dar banho, trocar seu bebê e prepará-lo para dormir –, e o escutamos várias vezes tentando imaginar cada uma das suas ações. Ela criou um circuito bastante complexo, mas que funciona muito bem para ela e seu filho. O que fica em jogo é a construção própria para dar conta dessa função: banhar, secar, vestir o bebê, alimentá-lo e ajudá-lo dormir.
As mulheres, não poucas vezes, se queixam do modo como os pais – companheiros – trocam a fralda, acalmam, põem o bebê para dormir. Fica em jogo o jeito próprio deles de realizar essas tarefas, e fica claro que é OUTRO jeito.
Estamos, agora no século 21, diante de duas questões delicadas: a solidão dos pais nos cuidados com os filhos, e uma infinidade de regras e preceitos de como é fazer certo. Criar filhos é uma tarefa coletiva, não é tarefa de um ou dois. Os avós, tias, irmãs moram longe (as pessoas se movimentam muito de cidade para cidade em busca de melhores oportunidades de trabalho; os avós, tias estenderam seu tempo de atividade profissional dada à dificuldade de viver com a aposentadoria, e também porque a noção de velhice mudou). A arte de cuidar dos bebês não passa mais de uma geração a outra, além do fato de que de uma geração para outra a ciência anda e propõe outras formas de solução para os diferentes problemas nos cuidados com os bebês.
Gostaria de mencionar uma terceira questão, que tem tomado muito tempo nas Rodas de Conversa: a relação com os pediatras. É certo que o pediatra é o profissional que colabora com os pais diante dos inúmeros acontecimentos durante os primeiros anos de vida: gripes, infecções, ganho de peso, dermatites, tombos, vômitos e diarreias, vias aéreas entupidas… E o pediatra leva horas para responder aos apelos dois pais – quando responde! É uma especialidade conhecida pelas demandas e aflições dos pais, e pelo fato de suas solicitações terem sempre o caráter de urgência, e não ser respondidas como tais.
A Roda de Conversa, organizada pelo Gamp 21, como tantas outras Rodas nas mídias preenchem, ou tentam preencher essas inúmeras necessidades. Troca de impressões, de soluções, de experiência, de histórias pessoais substituem aquela vizinha disponível que não temos mais.