Cuidado aos bebês: estamos na contramão da história?

Parentalidade | 10/06/2025

As mudanças tecnológicas estão em todo lugar mudando substancialmente o cotidiano de nossas vidas. Nos mais diferentes momentos e situações. Chegaram e nenhum de nós está a salvo delas, mesmo porque teríamos dificuldades para dar conta das tarefas de todo dia. Elas também se fazem presentes no cotidiano dos cuidados dos bebês. Desde sabonetes, cremes, passando por fraldas, berços, carrinhos, brinquedos, chegando a câmeras, cadeiras cantantes.

A psicanálise há mais de cem anos desenvolve uma clínica com bebês e seu meio, criando teorias e práticas terapêuticas com o objetivo de estudar e estabelecer as condições necessárias para que o psiquismo e a subjetividade se estabeleçam, características que nos tornam humanos e capazes de nos relacionarmos uns com os outros.  Centenas de profissionais se dedicando aos bebês e sua família resulta hoje num conhecimento poderoso e eficazes.

As neurociências e a compreensão do cérebro, o incrível progresso no conhecimento da fisiologia e anatomia humanas, com os novos meios para pesquisar e tratar dados, têm revolucionado o cuidado com os bebês e aberto possibilidades no campo da intervenção precoce com muito bons resultados.

No campo da Antropologia as perguntas são formuladas de outro ponto de vista: quais são as crenças, práticas, valores, sentimentos em relação aos bebês; porque as pessoas querem bebês. Eles precisam de cuidados especiais? Devem ser consideradas crianças? Qual é a natureza dos bebês? O valor dos bebês está no potencial do seu desenvolvimento futuro? Como as pessoas e seus entornos sociais desenvolvem suas estratégias de vida, no qual os bebês participam? A formulação das perguntas pode ser outra, mas tanto a psicanálise como a medicina e os campos afins se interessam igualmente pelas respostas.

A constatação é de que as ciências, exatas e humanas, caminharam substancialmente e oferecem respostas a respeito dos cuidados com os bebês. Mas é preciso perguntar de que modo elas impactam e se impactam o dia a dia dos cuidadores.

Vamos ouvi-los.  Uma participante da Roda de Conversa escreve: “vai aqui um pensamento aleatório: acho que o ser humano falhou nesse negócio chamado amamentação. Se é fisiológico, se os animais conseguem amamentar seus filhotes sem nenhum problema em sua maioria, por que a gente passa tanto perrengue?

Uma questão formulada com maestria. Vamos tentar pensar. Primeiro, de aleatório não tem nada. Não foram poucos psicanalistas, fonoaudiólogas, enfermeiras, médicos que se perguntaram por que a amamentação pode vir a ser tão difícil. As razões são múltiplas e de origem diversas. Mas comecemos apenas com um fato: não só o bebê precisa aprender a sugar, como a mãe a encontrar uma posição que favoreça a amamentação. APRENDER. Portanto é fundamental que haja um terceiro que ensine, mostre, proponha. No começo da amamentação a mãe está às voltas com um oceano de sentimentos, mal estares, confusões, impactos de toda ordem. Difícil começar esse processo sem ajuda. O bebê, recém-chegado deve coordenar a sucção, deglutição, respiração…. tudo junto pela primeira vez. O mamilo é sensível, machuca com a sucção antes de calejar. Precisa ser cuidado. Na apojadura a mulher corre o risco de ter várias intercorrências muito dolorosas se o processo não for bem orientado. Só para começar.

A pergunta inclui uma proposta instigante: qual é a diferença entre nós e os animais. Aparentemente para eles tudo acontece “naturalmente”. Simplesmente se dá. É o que costumamos chamar de instinto. Funciona. O drama é que nós não funcionamos pelo rigor do instinto, mas das palavras e seus sentidos, das emoções, da memória, do conflito. Tudo são nuances, contrapontos, sim e não, incertezas combinadas com certezas. Daí o “perrengue”, palavra tão bem utilizada. Há mulheres que não suportam o contato da boca do bebê no mamilo, ao contrário de outras para quem amamentar é uma fonte de satisfação. A fome, a eventual avidez do bebê, a dependência do contato com a mãe, o tempo de mamada, a disponibilidade exigida não é fácil de administrar. Estamos perto de dizer que é uma maravilha, uma dádiva quando dá certo. Daí os eventuais fracassos.

Queremos aqui enfatizar um ponto: é fundamental que a mulher tenha ajuda nesse processo. Nada, absolutamente nada, desabona a mulher que busca ajuda. Ela é necessária. Deveria ser um direito. Isso sim deveria ser “natural”.

Vamos ouvir outra participante: “o que eu fiz aqui foi esquecer isso de salto de desenvolvimento. Todos os dias são abertos às mudanças, são bebês. Parei de cronometrar as sonecas e sono noturno. Tudo eu consultava no aplicativo, só me gerava ansiedade.  Hoje observo sinais de sono, olho mais ou menos que hora dormiu. Já sei, um dia pode ser tranquilo, e o outro exatamente o contrário”.

E agora? Nossa segunda participante não está propondo exatamente o contrário? A avalanche de informações, contrainformações, conselhos, sugestões, aulas estão mobilizando mais “ansiedade” do que qualquer outra coisa. A opção escolhida foi seguir sua própria observação e fazer dela um bom uso. Ela vai aprendendo com seu bebê e aplica bem sua aprendizagem. Mais que isso, parte do princípio de que um dia não será igual ao outro, que essa gangorra faz parte do processo. O bebê é imaturo, está crescendo.

Nossa terceira participante: “Eu estou destruída, meu Deus, tem dias parece que não vou dar conta. Sem ajuda fica muito difícil, veem mesmo esses pensamentos. O cuidado com o bebê vira só trabalho”. Endossando este ponto: “O assunto é complicado, tenho que brigar senão o trem não anda. Meu marido ajuda pouco. Choro sempre que ele vai para a academia, porque estou tão exausta que não tenho vontade de cuidar da bebê (peço desculpas a Deus, depois de chorar muito). Amo minha filha, mas há dias que fico muito exausta e me sento péssima”.

As contribuições das nossas mulheres falam por si. Qual é nosso ponto? Apesar das conquistas das ciências, do gigantesco acúmulo de conhecimentos, as mulheres estão sozinhas. Muito sozinhas. Há uma grave crise na civilização, no nosso modo de vida que por pouco não começa a colocar em jogo a possibilidade de criar filhos. Há mulheres que conseguem administrar a pressão pela maternagem contabilizada (tabelas de todo tipo), e buscam a orientação na sua própria experiencia e no contato próximo com o bebê.

Há um contrassenso, uma constatação paradoxal: sabemos tanto pela via das ciências, e perdemos de vista o mais simples e o que é mais evidente: não é possível para nenhuma mulher criar filhos sem a colaboração da sua comunidade, das pessoas do seu entorno. As mulheres estão sendo colocadas numa encruzilhada difícil de ser enfrentada. De um lado são pressionadas pelo ideal da maternidade, e por outro, abandonadas na sua função de cuidar da geração que vem para nos substituir.  Dizer que estamos indo para traz não parece correto. É como se estivéssemos indo rapidamente para um futuro em que o individualismo, a exigência de que cada um deve dar conta do que é seu, cada um por si Deus por todos, falta de solidariedade se tornassem cada vez mais a regra vigente. Não faz muito tempo várias gerações conviviam, se ajudavam e colaboravam entre si.

Difícil entender. Nós, seres humanos, não somos o melhor que temos? Por que, diante do que já conhecemos muito bem – a importância dos primeiros 5 anos de vida que decidirão nosso destino de todos os pontos de vista – é tão malcuidada, tão pouco investida entre nós? Considerem a observação de uma participante da Roda: “eu era funcionária PJ e a dona da empresa onde trabalhei não deixou de me lembrar que eu não teria licença e nenhum benefício quando meu filho nascesse. Nossa relação é de empresa com empresa, dizia. Trabalhei vários fins de semana, até as 22h sem hora extra. A dona da empresa  ficava incomodada com minhas saídas durante a gestação para fazer exames (ultrassom) declarando diante deste fato de que eu era egoísta por pensar mais em mim e no meu filho do que na empresa”.  A participante faz uma análise interessante ao lembrar que há uma diferença entre ter filho e ser mãe uma vez que a dona da empresa também tinha filhos. A maternidade, por si só, não torna ninguém mais “empático”, segundo sua conclusão. Está aí um convite para pensar que a empresa eventualmente fica no lugar do filho predileto, fato tão próprio do nosso tempo.

Eva Wongtschowski é psicanalista, participa das Rodas de Conversa do Gamp21 e realiza atendimento clínico.