Quando você encontra pais, mãe ou pai, na rua com um bebê no colo você logo se alegra e sem cerimônia conversa com o bebê, faz gracinha tentando conquistar um pequeno olhar dele. Os encontros pontuais com bebês, que não demoram mais que alguns minutos, são sempre uma festa. Os bebês são bonitos, encantadores…. principalmente nestas circunstâncias. Mas os responsáveis por eles têm outro ponto de vista. Bonitos e engraçadinhos continuam sendo, mas os pais têm sido surpreendidos com a fragilidade e dependência dos bebês (que, aliás, sempre foram frágeis e dependentes) e quanto pedem e precisam da disponibilidade e presença deles. Como disse uma mãe, a assim chamada “maternidade real”.
“Morri e renasci” é a frase de uma participante da Roda de Conversa do Gamp21, que acontece todas as segundas-feiras. Uma pequena frase, mas que condensa com precisão a turbulência que envolve o período da gravidez, parto e o puerpério. Vamos fazer algumas hipóteses a respeito da ideia de “morte” que o abrange. Sobre o período da gravidez, que implica em não poucas mudanças e acontecimentos, faremos apenas uma observação: é um processo sobre o qual a mulher não tem nenhum controle. Ele vai se dando à sua revelia. Vai acontecendo sem que ela possa decidir sobre o tempo ou velocidade, o que deve vir primeiro ou depois. Apesar dos ultra sons, e da possibilidade de “ver” a criança, o que se “vê” indica muito pouco sobre quem será o bebê. O crescimento do bebê intra útero exige que a mulher se preocupe com o parto e todas as circunstâncias que virão junto. O parto implica sempre muitas perguntas cujas respostas demoram em vir, implica em medo, num imenso rol de variáveis desconhecidas. Corpo e a alma são envolvidos no processo do parto, dor, expectativa, medo, desconforto, vulnerabilidade porque dependemos da ajuda de profissionais de saúde, que às vezes nunca vimos antes, da sua paciência e gentileza, perícia e idoneidade, qualidades que se tivermos sorte comparecem. A ideia de “morte” fica presente neste momento pela cultura com que o parto foi se estabelecendo entre nós: a mulher numa posição passiva, deitada, e o médico ativo, é quem dirige e decide. É sempre interessante lembrar que não foi e não é sempre assim: a mulher pode em circunstâncias mais protegidas e respeitosas ter uma posição ativa no seu parto. Decidir, ser ouvida, participar falando de como se sente, o que precisa. A tecnologia, o avanço na qualidade da assistência a saúde, trouxe junto, como consequência, uma menor participação e responsabilidade do paciente. Somos colocados diante de decisões que às vezes nem chegamos a entender.
A segunda “morte” se refere à completa mudança na rotina da mulher. Por muitos meses. A mulher um tanto desaparece e se funde com as necessidades e urgências do bebê. Banho, escovar dente, comer, dormir… quando possível. Tudo o que se fazia até ontem não dá mais nem para imaginar. A novela das 21h, o banho um pouco mais demorado, a ida à academia, a volta com o cachorro, um filme no final do domingo, uma refeição longa e saborosa. Dito assim, simplesmente, parece um absurdo, mas essa é a tal “maternidade real”. A mulher fica, segunda uma autora, envolvida numa “névoa”.
O trabalho profissional é exigente, cada vez mais. Atingir metas, a pressão por resultados rápidos e bons, a competição por cargos e salários melhores, a necessidade de se especializar. De um dia para o outro, as exigências são outras. Choro, cólicas, gases, agruras com a amamentação, peito ferido, fezes com outra cor daquela esperada, nariz entupido, bumbum assado, fralda que vaza e o conteúdo que se espalha pela cama, bolinhas que não se tem a menor ideia do que sejam cobrindo o corpo do bebê, mas porque afinal o bebê não dorme se os pais têm tanto sono? Se nós comemos a cada quatro horas porque será que o bebê quer mamar a cada duas? Mal se termina uma mamada logo começa outra e assim vai hoje, amanhã, e depois de amanhã. A vida fica de cabeça para baixo. Ainda há que contabilizar o marido que morre de sono, e fica completamente sem entender o que afinal toda essa confusão quer dizer, é isso que acontece quando se tem um filho? Para que tanta complicação, além dos avós que já fizeram a mesma coisa há muito anos atrás e de um jeito, com certeza, muito melhor, quando tudo era muito mais fácil, assim o dizem (já esqueceram completamente, ficou enterrado no fundo da memória).
A “morte” da profissional antes esperta, versátil, com jogo de cintura. Cadê? Tenta-se estabelecer uma rotina, hora do banho, de colocar no berço, de amamentar, de trocar fralda, ir dar uma volta lá fora…. hoje e amanhã funciona muito bem, mas no terceiro dia desanda. E começa-se a estabelecer uma outra rotina agora por suposto mais adaptada ao gosto do bebê, funciona bem, mas por dois dias. Aí torna a criar outra. Não é por pouco que uma das mães da Roda faz a seguinte observação: “só quero que passe, não estou me encontrando”. A expressão é de novo muito precisa e esclarecedora. Os pais se desencontram de tudo o que sabiam, ou que imaginavam que soubessem, de tudo que leram e das informações que colheram. Há sem dúvida um desencontro inicial entre o que se suponha saber sobre gestação, parto e puerpério, cuidado com bebês, e o que de fato acontece.
As mães comunicam uma perplexidade com o que identificam como “não dá para fazer nada”, com a certeza de ineficiência, quando estão com o bebê no colo (porque ele só quer ficar junto, grudado na mãe). Ora, mas esse fato está longe, quilômetros de distância de não fazer “nada”. Estão justamente fazendo o que há de mais precioso e construtivo: estão SE oferecendo ao bebê. Palavras, calor, presença, muita presença, estar junto, garantia de existência, reconhecimento de existência, tom da palavra, ritmo de respiração, continuidade. Um universo inteiro de coisas tão inefáveis, difíceis de contabilizar, fazer volume, trocar em miúdos, fazer aparecer. Mas que constitui justamente no que há de mais precioso e eficiente para que o bebê se faça a si mesmo, que venha a se constituir num ser humano, em gente.
Esse repertório que a mãe transmite ao dirigir a palavra ao bebê, pegar no colo, trocar a fralda, amamentar, banhar, perguntar porque afinal não dorme, ir tentando saber o que é bom para ele: é isso que se chama de cuidar de um bebê. E quando a mulher, mãe, pai, quem quer que seja descobre isso, “ressuscita”. O trabalho, a batalha passa a fazer mais sentido: a resposta do bebê, agora maior e mais forte retroalimenta a energia dos pais. É como um quebra cabeça, contendo milhares de peças, cuja tampa da caixa onde veio embrulhado ficou perdido. Ali, agora, só as peças que precisam ser encaixadas uma a uma, mas não se sabe, não se tem a menor ideia no que vai dar. Uma paisagem com montanhas ao fundo, um satélite sendo lançado ao céu, uma praça num dia de festa? Na medida em que a cena se define, montar o quebra cabeça se torna tarefa prazerosa e desafiante. É no que apostamos.