Uma crise de birra é sempre difícil, quer seja para aquele que é acometido por ela quanto aos que a assistem.
Gostaríamos de acreditar que a birra é privilégio das crianças pequenas, em torno dos dois anos de idade. Infelizmente nós adultos somos, não poucas vezes, acometidos por ela. A observação “não levo desaforo pra casa” é justificativa para explosões de raiva, saraivada de palavrões. Um atendente que demora em nos atender, uma fechada de um carro no trânsito, o esquecimento do garçom…. Exemplos não faltam. Uma situação trivial pode adquirir um tamanho surpreendente, resultar em um transbordamento.
A birra é sinônimo de teimosia, capricho, expressão de braveza. Aquele que manifesta a crise de birra inviabiliza qualquer tentativa de conversa, persuasão, de chamada ao bom senso. Associada à agressividade e indisciplina merece um olhar mais cuidadoso.
Quando se trata de crianças a expressão de agressividade tem seu valor: a motilidade, a mastigação, a defesa se nutrem da força da agressividade. Por outro lado, não é possível esperar que uma criança pequena já demonstre disciplina. A birra envolve indignação com alguma coisa que não foi obtida, que não foi alcançada, ou simplesmente negada. É uma frustração vivida como absurda, uma declaração de impotência diante do que acontece. Choram, gritam, atiram objetos, se atiram ao chão. O fundamental é que a birra não seja administrada com birra, embora o adulto diante dela se sinta impotente tal qual a criança. Françoise Dolto sugere desdramatizar situações em que ambas os lados se encontram paralisados. Mãe ou pai podem deixar a culpa de lado; a culpa dificulta aos pais usar o poder da razão, ponderarem e tentar tranquilizar a criança. Dolto nos alerta que as manifestações psíquicas das crianças não devem ser resolvidas com gritos ou pior com indiferença, abandonando a criança a si mesma. Impossível abafar a birra. Promessas ou ameaças são contraproducentes; moralizar a birra (coisa feia, você tem que ser bonzinho é) um desastre. O melhor a fazer é ficar junto da criança, pegá-la no colo, sair do espaço onde a situação ocorreu. Afastar-se protege a criança e os adultos de si mesmos, evita olhares incômodos ou julgadores. A criança, não só o adulto, se sente vencida e dominada pela situação.
A criança pequena ainda não tem linguagem suficientemente desenvolvida para expressar com clareza o que quer e não tem condições de integração psíquica para enfrentar certos desafios. Isto é, não tem condições de avaliar a situação, buscar soluções alternativas, controlar sentimentos de impotência, reconhecer o direito do outro. Embora com 2 anos já tenha certa autonomia (anda, come sozinho, pode passar sozinha algum momento, conhece bem a rotina da casa) ela bem que gostaria que o adulto adivinhasse o que ela quer. Embora tenha clareza da diferença entre ela e o adulto, já se reconhece como ela mesma, ainda não tem possibilidade de discernir o que é e o que não é da ordem do possível. Depois de passada a crise, os pais podem colocar em palavras tentando dar um contorno ao que aconteceu.
Há uma diferença entre a crise de birra e a tirania infantil. A tirania se manifesta corriqueiramente e a birra, na melhor das situações, eventualmente. Não é pouco lembrar que crises fazem parte do crescimento e quando devidamente amparadas podem representar boas alavancas para o crescimento da criança. Winnicott faz uma observação valiosa quando diz que os pais devem falhar, isto é, não podem e nem devem, deixar tudo prontinho e certo para a criança: é central que ela possa experimentar o que não dá certo, o que não consegue, o que está fora do seu alcance. Frustrações, decepções, a impotência diante de certas situações fazem parte e devagar a criança vai encontrando meios de administrá-las psiquicamente. Se as frustrações forem excessivas inibem o desenvolvimento, mas quando houver pequenas doses de obstáculos no ambiente a criança fica desafiada a avançar. Sem limite não há desejo. Se tudo fosse possível a qualquer hora teríamos apenas necessidades fisiológicas. Ter tudo é muito diferente de poder usar o que temos. Freud nos avisa que adquirimos a capacidade de pensar justamente porque não somos nem estamos satisfeitos o tempo todo com tudo. Não temos o controle sobre os objetos e sobre as pessoas como gostaríamos, e essa impossibilidade é fonte importante de aprendizado.
Os pais têm a função de transmitir a demanda social aos filhos, responder à cultura mesmo além do seu desejo. É a isso que se dá o nome de educar. Os pais desejam que o filho alcance o que eles próprios não conseguiram (uma vida muito boa, felicidade….). Gostariam que os filhos não padecessem das limitações que afetam a eles e a todos. Educar é estar ciente de que isso não é possível, mas sempre é possível fazer essa transmissão de acordo com a visão de mundo própria e singular.
Texto publicado no Blog Papo de Mãe em 25 de outubro de 2021