A Inteligência Artificial desafia a inteligência dos pais

Parentalidade | 23/02/2024

Começo este texto com uma pergunta: com o que os homens e mulheres que estão tendo filhos hoje, década de 20 do nosso século (XXI) brincavam quando eram crianças? Com que, com quem, onde brincavam, sempre guardamos alguma lembrança desse período da vida. As experiências são muito diversas a depender do nosso local de nascimento: zona rural, interior, capital (no centro, na periferia). Quando nos referimos à atividade de brincar falamos de um tema fundamental em nossa vida que se entrelaça com quem somos, com o que e como trabalhamos, com a possibilidade de ter prazer com o desafio e as descobertas. Brincar quando somos crianças tem uma função estruturadora, como as fundações de uma casa.

Segundo Freud brincar e trabalhar se referem ao mesmo capítulo e podemos ligar um ao outro através de um só fio condutor. Sugiro a vocês assistirem o documentário Tarja Branca, como inspiração para suas rememorações. O “branca” do título faz referência ao brincar como não tendo contraindicações para a saúde. Gostaríamos que essa atividade tão central se mantivesse fazendo bem às crianças. Mas vai aí um alerta do Dr. Daniel Becker.

Pediatra, o Dr. Daniel assina uma coluna no Jornal O Globo. A matéria, à qual vamos nos referir, é do dia 4 de Fevereiro de 2024. Embora seja um tanto assustadora o melhor que temos a fazer é enfrentá-la. Vejam o que ele conta. “Uma startup do Vale do Silício vai liberar este ano bichinhos de pelúcia e outros brinquedos com inteligência artificial generativa”. A expressão generativa poderia se traduzir dizendo que basta uma pequena frase, uma ideia e a Inteligência artificial faz o resto. Você pode encomendar um quadro, um vídeo, sugerindo um detalhe e a inteligência artificial responde, compondo seu pedido a partir de milhões de elementos contidos na sua memória. Você que está lendo o texto não precisa ter quase nenhuma memória mais.

Grok, o nome do bichinho (já vem com nome!!!!) segundo Dr. Daniel será um verdadeiro “amigo “do seu filho: vai conversar, perguntar, desenvolver uma relação afetiva com ele”. Mas aqui vai um detalhe importante: Grok, munido de um microfone e câmera, vai recolher todos os gestos, movimentos, palavras do seu filho, tom de voz, interpretar tudo e manipular suas emoções. Eficientíssimo, vai acalmar sua birra, ler histórias na cama, história baseada em todas as informações recolhidas sobre a criança. Contos, histórias de fadas que ouvimos quando crianças, essas não servem mais. Histórias feitas especialmente para manipular emoções, opiniões e comportamento. Dr. Daniel nos lembra de que o Grok ”está conectado a um servidor gigante, com capacidades sobre-humanas de desenvolver conhecimento sobre a pessoa com quem interage”.

E continua, “por trás do bichinho há uma grande empresa, que visa o lucro, mais do que a proteção das crianças”. Desdobrando, Grok coleta dados sobre a criança e compartilha com terceiros, colocando em risco sua segurança e privacidade. Pior ainda, informa-nos que já há muitos casos em que hackers se apoderam das informações. Em síntese, manipulação de crianças com objetivos de lucro. Muito lucro. Vejam aonde chegamos: “no Brasil, a Human Rights Watch (Observatório dos Direitos Humanos) revelou que plataformas digitais de educação coletaram dados de crianças e adolescentes durante o ensino remoto na pandemia e os usaram para recomendar conteúdo publicitário personalizado”. Não é uma questão do que pode acontecer, das ameaças que estão por vir, não, elas já estão acontecendo. É presente.

Dr. Daniel faz um alerta: “uma empresa poderá ser mais íntima de seu filho e conhecê-lo melhor que você – e, portanto, ser mais influente na sua formação”. Formação de caráter, de valores e princípios, de visão de mundo, do que significa gostar, cuidar. Lembra de um vídeo realizado pelo economista Eduardo Moreira, que muito de nós vimos na internet, comunicando com todas as letras ter flagrado o Bing, inteligência artificial da Microsoft, tentando convencer a filha dele que ela podia sim “conversar com ele” mesmo que o pai tenha avisado de que não deveria conversar com a máquina.

Dado que as empresas não vão levar em conta os prejuízos de toda ordem que estão causando e qualquer forma de regulação vai demorar, Dr. Daniel Becker propõe aos pais que fiquem alertas: desativar câmeras e ativar mecanismo de controle, conferir as políticas de privacidade, atualizar o software regularmente. Verificar a reputação da empresa fabricante e ficar de olho, de ouvidos, de toda atenção às influencias que os tais bichinhos estão exercendo, numa suposta brincadeira ingênua, sobre a criança.

E termina o texto lembrando. Primeiro, que a melhor forma de aprendizado é a interação social, esse tal contato humano, a conversa, brincar junto, fazer refeições com todos em volta da mesa. Claro, é de fato o mais difícil, mas ainda a melhor forma de transmissão de valores e conhecimento. Freud afirmava de que mais importante do que o professor transmite é como ele transmite, mais importante do que a matéria que ele ensina, é o modo como age enquanto professor.

Segundo: o melhor brinquedo é o mais simples, é aquele que menos sugere como brincar e permite que a criança invente um jeito próprio de usá-lo.

Eva Wongtschowski é psicanalista, participa das Rodas de Conversa do Gamp21 e realiza atendimento clínico, presencial e online.