Nosso drama de todo dia

Pós-Parto | 29/06/2024

Bem me quer, mal me quer. Na brincadeira vamos tirando as pétalas da margarida perguntando a cada vez se uma determinada pessoa gosta ou não gosta da gente. A retirada da ultima pétala é que vai valer como resposta. Essa talvez seja uma das questões centrais na nossa vida: se somos amados, o quanto e por quem somos amados. A questão se complica um tanto quando nós mesmos não nos amamos ou não reconhecemos nosso valor.

Tomo emprestada a frase de uma participante da Roda de Conversa do Gamp 21 que pergunta: “Cada um tem um problema: acordei péssima me perguntando qual é a definição de uma boa mãe”. Embora “ele não dê trabalho” ocupa todo seu tempo cuidando do filho e está exausta, dorme pouco. Parece haver uma contradição: dedica-se ao filho, dia e noite, ele está bem (não dá trabalho), aparentemente não considera que haja alguma coisa fora do lugar – isto é, bebê dá mesmo muito trabalho. Apesar disso há duvida e apreensão na sua frase: seu trabalho e dedicação podem ser reconhecidos como bom? Ela pode ser reconhecida como uma boa mãe? Boa mãe é aquela que cuida do bebê, dia e noite, o bebê responde bem aos seus cuidados, mas ela não poderia estar exausta? Ou deveria também dar conta de cuidar do marido, dela mesma, da casa para ser considerada boa mãe? Por que a apreensão?

Esta apreensão está na ordem do dia, é fruto de uma cultura onde o ideal está colocado no centro de nossa vida. Blogueiros, influenciadores digitais, artigos de revista e outros que tais ditam seus mandamentos imperativos. Segundo nossa autora “definem” o que é beleza, sucesso, como se deve educar os filhos, o que vem a ser uma boa vida sexual, o que afinal você deve comer …. e como deve ser uma boa mãe.

Vocês conhecem aquelas propagandas de fórmulas de leite para bebês, produtos de higiene e roupas onde a “mãe” aparece toda linda, feliz e parecendo viver no paraíso? Uma realidade que se pretende natural, fácil, coerente acaba por estabelecer um critério de orientação, um rol interminável de regras de conduta. Desconsidera o que não dá certo, esconde as dificuldades e encruzilhadas, justo aquelas que não temos a mais vaga ideia de como resolver. Encontro à expressão “protótipo sadio” * que nos serve bem.  São modelos que se seguirmos, estaremos por dentro, caso contrário, ficaremos de fora. É uma construção social, baseada numa realidade inventada, fictícia, que não leva em conta o que de fato vivemos.

Não é o caso de colocar as mais diferentes fontes de informação (cursos, lives, orientações, amigos, parceiros de Roda) todas no mesmo saco. Daí a importância de usar cautela e critérios para decidir o que ajuda e diferencia-los do que só complica ou propõe o impossível. O que faz sentido para cada um de nós, o que fala de uma realidade com a qual compartilhamos, que fala de perto com o que estamos vivendo.

O risco é trocar o real, o possível, pelo ideal que justamente por ser ideal é impossível de alcançar. O ideal serve como uma espécie de indicador, mas deve-se ter claro que é apenas um indicador.  Quando nos orientamos tão somente pelo que deveria ser e não pelo que é possível nos tornamos reféns da culpa, de uma vivência de inadequação.

O bebê, dada sua condição ao nascimento, chora, tem cólicas, gases, precisa ser acompanhado para dormir nas primeiras semanas, precisa ser alimentado a cada duas, três horas.  Este é um fato, faz parte da realidade humana. Imaginar outro cenário não supõe um bebê humano. Não é possível imaginar um bebê feliz e satisfeito o tempo todo. Sentir fome é penoso, mas é o que permite sua busca e esforço por se alimentar e, portanto, garantir sua sobrevivência.

A mulher (e o homem) enquanto mãe (enquanto pai) exerce a função social de preparar um novo ser humano para tomar seu lugar no mundo. Ela tem um lugar ativo e participativo na vida da comunidade cuidando, educando, transmitindo sua cultura e experiência. Mas isso não se faz sem tropeços, idas e vindas, dúvidas, erros e acertos. É uma atividade onde se ganha e perde. Mães ficam diante do que não sabem, do que ainda não fizeram, e isso possibilita aprender, mudar rumos, tentar fazer melhor. Imaginar um percurso sem obstáculos e dor é irreal.

Não há mãe pronta e completa, o sublime caminha junto com o pesadelo. O pesadelo se faz presente quando a mulher se dá conta de que não é possível se fazer o que se quer, agir arbitrariamente pelo gosto que lhe dá proceder assim. Há de fato uma dupla vertente em jogo: de um lado o modelo ideal, e de outro as regras que articulam os laços, as relações sociais. A função da maternidade caminha entre as duas vertentes. De um lado pressionada para se alinhar com o “protótipo sadio”, perfeito e irretocável da ordem do impossível e de outro levar em conta o fato de que o que fazemos e escolhemos para o filho não pode ser da ordem do arbitrário e responder apenas a um desejo próprio. Nossa proposta é que entre essas duas vertentes é que reside toda dificuldade. De um lado a crítica, a autocensura de não estar sendo uma “boa mãe” e por outro a busca pelo acerto, pelo fazer correto, da informação garantida.

 

*Expressão usada pelo psicanalista Mario Fuks, ao fazer uma citação em Psicopatologia psicanalítica e subjetividade contemporânea.

Eva Wongtschowski é psicanalista, participa das Rodas de Conversa do Gamp21 e realiza atendimento clínico, presencial e online.