O bebê como estrangeiro

Parentalidade | 01/06/2024

A questão sobre o estrangeiro, aquele que vem de outro lugar, que fala outra língua, tem outros costumes e outra visão de mundo e da vida, já consumiu muita tinta e muito rolo de filme. É um tema que está sempre na ordem do dia. Como entender e como se fazer entender por aquele que pensa com palavras diferentes das nossas, nomeia as coisas do mundo com expressões desconhecidas, que se alimenta com frutos que nunca vimos, que canta num ritmo estranho para nós? Isso sem falar no modo inusitado com que nosso vizinho de porta resolve seus problemas de condomínio. Estrangeiro somos todos. Os Ets estimulam nossa imaginação: como seria encontrar um, o que faríamos para tentar estabelecer algum contato e entender ou sermos entendidos?

“Tenho tido uma sensação de não pertencimento, não pertenço a lugar nenhum. É muito estranho”. Essa frase foi escrita por uma participante da Roda de Conversa organizada pelo Gamp 21. Pequena frase, acurada, especialmente precisa, que condensa um capítulo de muitas paginas a respeito das condições do exercício da maternidade. Quem não pertence, o bebê, a mãe? Os dois?

O bebê nasce, sem dúvida, com um bom repertório: conhece a voz da mãe e do pai (se este viver próximo da mãe), conhece o estilo de movimentação dela (levantar, sentar, caminhar, deitar), seu cheiro. Quando têm sorte mãe e bebe são colocados em contato assim que ele nasce: ele busca ativamente o peito e o olhar da mãe. Quando colocado no colo do pai também busca imediatamente seu olhar. Neste momento ele já formula uma pergunta: por que você queria que eu nascesse? O bebê nasce com um potencial gigante para seguir vivo: para aprender o que lhe for dado a aprender. A buscar contato, a se comunicar.

Quem organiza o contato e a comunicação são os cuidadores. O bebê tem o potencial para acolher o contato e responder, ele é ávido por ser visto, ouvido, sentido e amado. Cada mãe e pai é que vão, com sua experiência pessoal de terem sido filhos (portanto bebês) e aquela acumulada nos anos de convivência e aprendizado na vida supor o que ele quer e precisa. A linguagem com a qual o bebê se comunica é corporal, e deve ser lida e interpretada pelos pais. Os choros, a expressão facial, os gestos e forma de se movimentar, cada um vai compondo com as palavras com as quais os pais entendem e leem o que talvez o bebê esteja tentando expressar. Essa relação entre a fala corporal do bebê e as palavras com as quais os pais vão nomeando-as e suas ações correspondentes é que vão estabelecendo a relação. É neste sentido que o bebê é um estrangeiro, que chega sem falar nossa língua, sem conhecer nossos costumes. Vem de outro lugar e terá que se familiarizar com sua nova moradia junto com seus cuidadores. Aprender a língua, usos e costumes. dos quais ainda nada sabe.

É a mãe aquela que costuma cuidar vinte e quatro horas por dia do bebê, sete dias por semana, trinta dias no mês. Quando tem ajuda, menos; a amamentação no peito cria uma ligação muito próxima, importante entre mãe e bebê. Este tempo de contato, principalmente nos três primeiros meses, exige que a mãe mergulhe num universo muito particular, o do bebê. E é este mergulho que cria a sensação de estar fora do mundo onde até então se viveu. A mãe é convocada pelo bebê com todo seu corpo. A assim chamada exterogestação, isto é a gestação fora do corpo, implica que o bebê se reencontra consigo mesmo, se reconhece, cada vez que está próximo do corpo da mãe, com que esteve em contato durante seus 9 primeiros meses de gestação. A mulher tem olhos, ouvidos, tato, inteligência em função do cuidar, entender, acompanhar seu bebê. A fragilidade e completa dependência do bebê pede essa atenção concentrada. A mulher fica como envolvida numa névoa onde tudo o mais – que não o bebê – se distancia. Daí a menção, da autora da frase, ao estranhamento. Lembrando ainda que nesse primeiro trimestre a mulher não está trabalhando, não sai de casa, não tem tempo de ver seu programa favorito, raramente fala com amigos. Fica absorvida no mundo do bebê, tão repleto de pedidos e solicitações.

A companhia de um terceiro (seja pai do bebê, parente) que conversa, divide os relatos dos pequenos acontecimentos do dia a dia, que conta alguma coisa é fundamental nesse período.

Eva Wongtschowski é psicanalista, participa das Rodas de Conversa do Gamp21 e realiza atendimento clínico, presencial e online.