Relato aqui pequeno trecho de um diálogo com uma das participantes da Roda de Conversa (bebês 0-3 meses). Ela conta que estava com sua bebê no colo, sentada diante da T.V. ligada. Ao se levantar a bebê começa a chorar e ela entende que a filha reclama porque queria continuar olhando a tela. Resolve sentar-se novamente, a filha para de chorar e, supostamente satisfeita, dirige, mais uma vez, os olhos na direção da tela.
A mãe faz seu relato entre orgulhosa e indecisa. Orgulhosa porque apesar de tão pequena sua filha já manifesta de modo tão claro, segundo ela, o que quer. Expressa suas preferências sem deixar dúvida.
Indecisa, por que afinal, será isso recomendável? Um bebê tão pequeno (ao redor dos três meses) ficar tão interessado numa tela, chorar quando não pode se manter olhando? A mãe deixa uma pergunta no ar.
Nós, enfermeira e psicóloga, responsáveis pela coordenação da Roda, também ficamos um tanto atrapalhadas com o relato, sem saber, num primeiro momento por onde começar. Daí termos nomeado o texto de “uma situação delicada”. Delicada para todos.
Resolvemos, para fins de raciocínio, dividir a conversa em três partes. A primeira, sobre o descanso e a importância das mães terem algum momento de lazer e repouso. Assistir T.V. para relaxar, para fazer contato com o mundo lá de fora, sair do foco dos cuidados com o bebê. A importância em dividir a tarefa com outro adulto, e poder se ocupar de si mesma. Infelizmente isso nem sempre é possível e cada mulher teria que pensar em alguma alternativa para um pequeno intervalo e respiro sossegado.
Em segundo lugar, a questão das telas na infância. Vale a pena tornar a falar sobre esse assunto. A Sociedade Brasileira de Pediatria estabeleceu recomendações sobre o assunto pressionada pelo fato de que pediatras se surpreenderam com o aumento no número de crianças que apresentam problemas de comportamento e dificuldades importantes na aquisição da linguagem relacionadas com a exposição excessiva às telas. A recomendação é de que crianças até 2 anos de idade não devem ser expostas à tela, qualquer que seja. Entre 2 e 5 anos uma hora no máximo. A partir dos 6 até, no máximo, duas horas. A exposição à tela impacta negativamente no desenvolvimento neurológico. A pediatra Ana Escobar explica: durante os dois primeiros anos de vida a rede neuronal aumenta rapidamente, em torno de 700 sinapses por segundo. Até 6 meses de vida a cabeça cresce 10 cm e os outros 10 levarão muitos anos para se completar. Sons, dos mais diversos (principalmente a voz humana com diferentes tons, inflexões, timbres, volume) texturas de todo tipo (duro, macio, liso, áspero, regular e irregular), movimentos em diversos planos e eixos, percepção visual (o ponto, a linha, a forma, a direção, tom, cor, textura, dimensão, escala e movimento), o olfato e o paladar (o leite materno muda de gosto de acordo com a alimentação de quem o oferece ao contrário do leite de fórmula que tem sempre o mesmo sabor). Todas essas percepções se combinam e a cada momento se associam com um afeto (prazer, desprazer).
Ao ficar diante da tela a criança conecta não mais que uma pequena região neuronal como se ouvisse apenas um instrumento de uma orquestra inteira. Paulo Lobão, pediatra, fala o mesmo ao dizer que diante da tela a criança vê o mundo em duas dimensões, e quando brinca e se relaciona com pessoas o faz em três dimensões.
Ficar diante das telas prejudica a neuroplasticidade (formação e reorganização das redes neurais que se dão no cérebro). O crescimento e aprendizado produzem alterações anatômicas no córtex pré frontal (responsável pelo raciocínio), no lobo parietal (interpreta sinais táteis), no lobo frontal (relacionado à memória e linguagem) e occipital (que processa sinais visuais).
A exposição pode interferir no ciclo circadiano ao introduzir mudanças na produção da melatonina (hormônio do sono). A luz dos aparelhos não é menos problemática.
Angelica Caavila, pediatra, faz uma análise crítica dos desenhos animados, supostamente indicados para crianças. Só parecem inofensivos, mas podem ter efeitos bastante nefastos. Em Cocomelone, por exemplo, a qualidade dos estímulos sonoros e as trocas rápidas de cenas (a cada 2 segundos) dificultam a auto regulação por um excesso tal que torna impossível seu processamento. Há uma hiperativação da dopamina (neurotransmissor) cuja consequência é a criança querer cada vez mais, e o desenho se torna viciante. Em Booba, outro desenho “animado”, os gritos dos personagens têm como efeito a dificuldade em sustentar a atenção e a criança reage de um modo caótico, impulsivo. A tela convida a inércia, a recepção passiva de uma escolha feita não sabemos bem com que objetivo. Não responde a qualquer manifestação da criança, continuando indiferente às suas perguntas ou reações. Embora a tela não converse e não leve o Luizinho ou a Helena em conta, isto é, uma criança em particular, produz efeitos, muitas vezes, intangíveis.
Em terceiro e último lugar, um ponto difícil. A mãe, na dúvida, resolveu ceder à manifestação da criança que ela supôs ser “quero continuar a ver o que estou vendo”, e a manteve diante da tela. Vamos imaginar outras situações nas quais a criança manifesta claramente seu desagrado com a interrupção do que vinha acontecendo. Há crianças que adoram o banho e manifestam seu desagrado quando ele termina. Mas nem por isso o adulto a mantém no chuveiro ou na banheira. Tenta acalmá-la e fazer do momento seguinte um bom momento. Quando possível. Fica implícito nesta decisão um ato estruturante e fundamental na aquisição de competências psíquicas: a presença e ausência. Banho, não banho. Assim com todas as outras situações: o ganho e a perda, o sim e o não, o agora e o só depois. Se não houvesse intervalos no prazer não haveria memória, não haveria desejo, não haveria busca pelo que perdemos. É difícil sustentar decisões nas quais comunicamos ao bebê que o prazer não pode durar para sempre, igualzinho. Mas é condição para que ele possa vive-lo mais uma vez. E depois, mais uma vez.