A mãe como estrangeira

Parentalidade | 03/06/2024

Retomo aqui um tema importante sugerido por uma mãe participante da Roda de Conversa do Gamp 21 (0 a 3 meses) ao qual nos referimos no texto “O bebê como estrangeiro”. Ela diz: ”tenho tido uma sensação de não pertencimento, não pertenço a lugar nenhum. É muito estranho” ao se referir à experiência pessoal vivida como mãe diante da tarefa de cuidar do seu bebê.

Nunca é demais lembrar que as contribuições das participantes da Roda constituem um material valioso que cria a oportunidade de pensarmos como mulheres, de um determinado grupo social, estão vivendo a experiência de cuidar dos seus filhos recém- nascidos.

A rigor vários psicanalistas produziram trabalhos que versam exatamente sobre a impressão que nossa mãe da Roda nos transmitiu. Vou citar dois.

Começamos por Winnicott, eminente pediatra e psicanalista inglês, que viveu entre 1896 e 1971. Ele sugere que as mulheres durante o final da gravidez e no pós-parto desenvolvem uma condição psíquica que denominou de “mãe devotada comum” ou de “preocupação materna primária”. Nesse estado a mulher ficaria identificada com o bebê, isto é, ela fica tão ligada ao bebê como se em alguns momentos pudesse sentir como ele, se colocar no lugar dele. O repertório de lembranças que cada um de nós estabelece na sua própria experiência de ter sido um bebê, de ter sido cuidado por alguém é reativado, colocado em movimento para estabelecer este estado que Winnicott chamou de “especial”. É um estado que se desenvolve gradualmente, desde a gravidez, e vai se transformar em uma condição de intensa sensibilidade, e que se prolonga no decorrer das primeiras semanas de vida do bebê. Não poucas mulheres enquanto estão no pós-parto se perguntam, um tanto impactadas pela dificuldade deste período, como é possível que haja mulheres que, depois da experiência do primeiro filho, ainda se dispõe a ter outros. Depois do período inicial de preocupação materna primária a mulher esquece do que passou, o que lhe abre a oportunidade de ter outros filhos.

No estado da preocupação materna primária a mulher fica como que afastada, distante, pouco interessada no que a envolvia anteriormente, poderíamos dizer parecida com as características do bebê. Não podemos deixar de enfatizar que atingir esse estado é justamente possível para as mulheres que têm um estado psíquico saudável e suportam essa transformação delicada que as torna aptas para cuidar de um bebê completamente dependente e com tantas urgências. Não se trata apenas de amamentar, manter o bebê limpo, colocá-lo para dormir. A presença, a pessoa da mãe se faz necessária para acompanhar o impacto da dor, da fome, do desconforto, da própria existência; é a partir deste acolhimento que o bebê vai se fazendo, vai se constituindo.  A mãe é a porta voz do bebê, traduzindo em palavras o que o bebê manifesta e vai incluí-lo entre as pessoas da família, do seu grupo social. Winnicott vai nos lembrar de que a maternidade constitui uma “doença contingente”, uma espécie de doença benigna e produtiva.

Monique Bydlowski médica e psicanalista francesa (ainda viva) acompanha Winnicott caracterizando o período de gravidez e pós-parto como de uma “loucura normal”. Segundo ela neste período da vida a mulher se retira um tanto do mundo externo e fica como permeável a lembranças de períodos anteriores da sua vida. O que parecia esquecido volta, o passado retorna. Não poucas vezes a mulher até se assusta com o que lhe vem à cabeça. São essas experiências anteriores que se movimentam e lhe fornecem condições de cuidar usando seu repertório de como foi cuidada. Essa condição exige da mulher uma recomposição de si mesma, um realinhamento do que foi e do que é agora. Uma vivencia de excesso, de uma ruptura em relação a um momento anterior que mobiliza seus recursos psíquicos com os quais vai criar novos sentidos e significações para a vida. Portanto a gestação e o pós-parto se constituem em período caracterizado pela instabilidade.

Vivência de estranhamento, de não pertencer a lugar algum, corresponde às longas e complexas teorizações que psicanalistas têm feito, já desde há muito tempo, sobre as profundas transformações que a maternidade provoca. Portanto, nossa participante da Roda expressou com precisão e sensibilidade sua própria experiência.

Eva Wongtschowski é psicanalista, participa das Rodas de Conversa do Gamp21 e realiza atendimento clínico, presencial e online.