O bebê no museu

Parentalidade | 10/10/2025

Uma pequena e grande história

Vale a pena se debruçar sobre a história contada por uma integrante da Roda de Conversa de mães com bebês entre 7-12 meses. Ela relata que gosta muito de ir à museus, ver exposições; deixou de visitá-los enquanto seu bebê era muito pequeno. Com o bebê maior decidiu que era hora de voltar a eles. Compra os ingressos e chegando na entrada do museu o funcionário diz: está faltando um ingresso. Ela não entende no primeiro momento, mas o funcionário insiste sobre a entrada do bebê que ali estava bem instalado no colo da mãe. Ela retruca dizendo que se ele não paga não precisa de ingresso. O funcionário insiste: precisa sim. Ela vai até a bilheteria e pede mais um ingresso para uma criança.

O funcionário nos comunica, com toda clareza, a seguinte mensagem: o bebê, mesmo sendo de colo, que ainda não anda, não fala, CONTA. Aos olhos do museu ele é um cidadão visitante. Portanto precisa de ingresso. O ingresso dele vale como de qualquer outra pessoa. Sua visita será devidamente contabilizada.

Vamos desenvolver o ponto de vista do funcionário. Quando o bebê nasce ele é inscrito no cartório de registro civil. Os pais, ou responsáveis devem escolher um nome para o recém-nascido, informar data, hora e local do nascimento (o documento fornecido pelo hospital ajuda), filiação (nome dos pais), sexo. O nome dos avós maternos e paternos e os dados do declarante do nascimento.  Assim a criança é registrada numa linhagem cultural e jurídica.  Cultural porque fica inserida numa família, num determinado tempo e lugar geográfico, em uma comunidade; jurídica porque é reconhecida legalmente perante a lei, tendo confirmada sua identidade por um órgão devidamente credenciado perante o estado para tal função.

A escolha do nome próprio tem uma história para quem o escolhe, embora o nome por si só não queira dizer nada, nem defina o que quer que seja a respeito de quem o carrega. O que vai fazer a diferença não é o nome em si, mas o que cada um de nós imagina e cria a respeito do nome que tem.  Envolve um processo social de subjetivação porque a criança é designada e se designa pelo nome e vai poder dizer “meu nome é”, se fazendo única. Dionísio Trácio, um gramático, dizia que o nome próprio se constitui em uma propriedade.

Quem escolhe o nome nem sempre tem muita clareza a respeito da razão da escolha. Pode ser por razões estéticas – é bonito, sonoro – em homenagem a um parente querido, ou a uma pessoa que se admira. A escolha pode envolver um desejo, um projeto, uma aposta, mas quase sempre é apenas uma escolha, escolha sem maior análise ou problematização.   Às vezes os pais gostam do nome e apenas isso.

Os fios que tecem o “berço psíquico” do bebê, expressão cunhada pela psicanalista Olga Correa, incluem a mãe e todo seu grupo familiar, contando de frente para trás até muito longe. É exatamente por essa razão que cada um de nós quando nasce já nasce com uma pré-história, construída por aqueles que nos antecederam e da qual faremos parte. Isto é, a história daqueles que vieram antes de nós nos alcança. A todos, sem exceção. E isso tem lá suas consequências, para o bem e para o mal.

Há uma continuidade na transmissão entre as diferentes gerações. O pai, só para dar um exemplo, amante do futebol inicia seu filho muito cedo no esporte. Não poucas vezes coloca na porta do quarto, na maternidade, a camisa do seu time do coração, convidando o filho para dar continuidade à torcida. É uma transmissão de pai para filho. O bebê herda os sonhos e desejos dos pais, e no melhor dos casos, vai saber que destino dar para essa herança. Pode escolher se vai ou não torcer, mais tarde, para o mesmo time escolhido pelo pai.

Há transmissão de ideais comuns, compartilhados pela família, por um grupo, por uma comunidade. Transmite-se crenças, valores, saberes. Conhece aquele bolo que a bisavó fazia, e a receita foi passando de geração em geração, e em todo aniversário de alguém da família lá está o bolo? O bolo passou a ser uma tradição da família.

Pela via da transmissão cada um pode recriar, de um modo próprio, o que recebeu. Desde o time de futebol, passando pelo bolo, até escolhas que envolvem modo de viver, amigos, profissão, gostos. Você decide mudar um ou outro ingrediente do bolo para deixá-lo menos calórico e assim por diante com tudo o mais. É um modo de tomar o que se recebeu, recriar, recriando a si mesmo.

Até aqui está fácil. Começa a ficar difícil quando o que vem pela transmissão são acontecimentos e experiências que não puderam ser assimiladas, administradas por aqueles que os viveram. Perdas e lutos não elaborados, situações que envolvem humilhação e vergonha que não puderam ser devidamente articuladas, aos quais não se pôde dar um sentido. Acontecimentos cujas razões nunca foram explicadas, segredos, proibições decididas não se sabe por quê. Uma vez que cuidar de um bebê é estabelecer com ele uma relação, um vínculo, é justamente por essa via que se dá a transmissão. Inevitável. Transmitirmos o que é bem conhecido e o que desconhecemos; o bebê é chamado a compartilhar os bens culturais, os valores e crenças (o time de futebol, a receita do bolo, as músicas, as comemorações), como também aqueles processos que são conflituosos. Fazer parte da família, de um grupo ou comunidade é herdar as duas qualidades de transmissão.

Sabem daquela história da mãe que diz para a filha que não pode lavar a cabeça quando está menstruada? A explicação é que “trava” a descida. Mas segundo a medicina o banho quente, ao contrário, até ajuda aliviar as cólicas, porque o calor relaxaria a musculatura inclusive a do útero. E a da manga com leite, que pode até matar? Este mito tem origem no Brasil Colônia. Os tais senhores de engenho queriam evitar que os escravizados consumissem leite porque era caro e disputado e a manga barata, havia em quantidade e era muita consumida. Simples, espalharam a falsa informação de que consumir os dois era fatal. Uma bobagem, e vale lembrar, a tempo, que os dois juntos formam um alimento rico e nutritivo. É interessante considerar que a mentira nem sempre tem pernas curtas.

Goethe, poeta e escritor alemão (1749-1832) cunhou a frase: “aquilo que herdaste dos teus pais conquista-o para fazê-lo teu”. Isto é, não herdamos nada por osmose, automaticamente, mas o que herdamos precisa ser transformado para vir a fazer parte de nós (para além das características físicas). Faz-se necessário um trabalho para tomar posse do que nos pode caber. Esse trabalho tem graus muito diversos de dificuldade, e cada um de nós tem mais ou menos liberdade para mudar, refazer, aplicar de outro modo aquilo que nos foi transmitido.

A transmissão que toda família faz, mesmo sem se dar conta disso, à nova geração, se relaciona com o que denominamos “confrontação de gerações”, de pais e filhos, dos agora pais com seus próprios pais. Esta confrontação é um exercício fundamental entre as gerações, condição para construir uma nova visão, uma nova ordem sobre a vida e como vive-la. Não se dá sem riscos, mas cria espaço para a divergência, a possibilidade de pensar de modo diferente, e apesar disso, conviver. Os pais de bebês ficam diante deste conflito quando vão escolhendo e decidindo como cuidarão da sua prole, eventualmente dando passos e tomando iniciativas diferentes dos seus próprios pais.

A inspiradora deste texto escolheu introduzir seu bebê no mundo das artes. Lá está ela com seu bebê no colo posando para fotos diante de quadros do museu. As fotos são lindas. Ela faz este convite ao bebê, mas não temos nenhuma ideia do que ele fará com o chamado materno para o desfrute das artes.

Eva Wongtschowski é psicanalista, participa das Rodas de Conversa do Gamp21 e realiza atendimento clínico.