Mães fazem ciência?

Parentalidade | 20/08/2022

A ideia que temos dos cientistas envolve, com frequência, pessoas de jaleco branco debruçados sobre microscópios, manejando aparelhos complexos, usando reagentes químicos em tubos de ensaio, buretas e bastões de vidro; aquele às voltas com fórmulas matemáticas gigantes e intricadas para resolver problemas ainda mais gigantes e intricados.

Nas ciências ditas humanas o método da observação é a principal ferramenta para conhecer a realidade. A observação é um meio de se situar, de se orientar, perceber o outro, e por que não, a si mesmo. Observando as pessoas podemos nos aproximar do seu modo de pensar, de como resolvem problemas, como administram conflitos e se organizam para viver. Vale lembrar que antes de se tornar um método científico, a observação que é feita pelo escutar, olhar, sentir com o tato, cheirar, experimentar o gosto foi uma ferramenta importante para a sobrevivência do homem e seu aprendizado. Primeiro se observa, depois se transforma o que foi observado em ideia, teoria, regra, tecnologia.

Observar pessoas sempre envolve questões muito particulares porque observar e ser observado não é uma atividade neutra, envolve significados e emoções e, portanto, influências mútuas.  Diferente de observar uma estrela, ou o movimento do mar, a folha de uva.  Mas o professor deve observar seu aluno se pretende ajudá-lo a aprender melhor. Os pais, os filhos para saber como colaborar com eles. Pela observação podemos identificar, por exemplo, o choro, a dor, a alegria. Recolhemos informações usando os órgãos dos sentidos (olhos, ouvidos, olfato, pele), estabelecemos um reconhecimento, organizamos as informações e por fim realizamos uma operação de síntese. Em um segundo momento podemos vir a transformar o resultado desse processo em ação.

Na formação de um pesquisador o capítulo da metodologia da observação é matéria importante. Colocaria a mãe, o pai, aquele que cuida do bebê ao lado do pesquisador, pelo fato de que se faz necessário observar o bebê, para cuidar dele. O bebê informa os pais quando está cansado, com fome, quando precisa de companhia.

Na cultura ocidental o conhecimento apresentado na forma de escrita, é aquele de fato mais valorizado. Se está escrito, documentado, então deve ser verdade. Isso em qualquer área do conhecimento (ciências, humanidades, literatura). A escrita garantiria a estabilidade e permanência do conhecimento. Há escritos que nunca envelhecem e outros que amarelam, passam para a história e são readaptados ou substituídos por novas experiências e descobertas. Se considerarmos que o primeiro computador, apresentado no ano de 1946 tinha dois metros de altura, pesava 30 toneladas e ocupava 180 metros quadrados e hoje pesa algumas gramas e cabe no bolso, a gente se assusta um tanto.

Mas o conhecimento não é transmitido apenas pela escrita. Ao contrário, há muitas civilizações que permanecem vivas apoiadas pela transmissão oral. E não são poucos os cientistas do mundo todo que veem ao Brasil em busca de conhecimentos sobre plantas medicinais junto aos nossos indígenas, conhecimento adquirido há centenas de anos e transmitido de geração em geração pela oralidade.

No melhor dos mundos qualquer conhecimento que possa melhorar a nossa vida – seja vindo da ciência constituída ou da experiência milenar dos povos – deveria estar acessível a todos. Acessível até para ser experimentado, testado e eventualmente melhorado ou modificado.

A Roda de Conversa do Gamp 21 faz um esforço para reunir, de um lado a ciência (amamentação e cuidados com o bebê) e as humanidades (o que se conhece sobre a constituição do psiquismo, as complexidades envolvidas no relacionamento pais bebê) e de outro sua tradução em uma linguagem acessível que possa facilitar o dia a dia do trato com os bebês. Não basta conhecer o conjunto das ciências que envolvem a atenção ao bebê, é necessária uma tradução.

As enfermeiras que participam da Roda estudaram durante anos teorias, regras, normas, procedimentos, mas tudo isso deve ser devidamente processado e sintetizado para que haja transmissão. Como traduzir o sofisticado processo de produção do leite materno, sua relação com o ato de sugar do bebê, ligados às vicissitudes do funcionamento gastrointestinal do bebê? Ora, não basta a enfermeira conhecer o assunto, ter estudado, passado por todas as provas da sua especialização; se faz necessário que ela traduza seu conhecimento numa linguagem acessível para a mulher não poucas vezes exausta, um tanto desesperada, às voltas com um bebê que chora e não dorme. Linguagem que ao ouvir, a mulher possa transformar em atos, gestos que resolva a sua dificuldade.

Mas há ainda outra questão a ser considerada no grupo online: as mulheres dividem o resultado da construção da sua experiência, isto é, da construção de uma “ciência”, no sentido de conhecimento adquirido pelo seu próprio ensaio, teste, descoberta. Uma autêntica transmissão oral … Ficamos encantados com a descrição de uma mulher que amamenta e embala seu filho deitada na rede (ela mora numa região do Brasil onde o uso da rede para dormir faz parte da cultura local). Interessante que os dois dormem, e segundo ela sem risco nenhum (dada sua familiaridade com a rede). Outra mulher conta que banha seu filho no tanque de casa, com a observação adicional que é muito mais fácil e confortável para seu bebê. Uma terceira relata que seu filho, agora com os primeiros dentes, mordia seu peito; resolveu oferecer água num copo de material duro, que aí sim ele podia morder. Mordendo o copo duro deixa de morder seu peito, segundo sua experiência. Ainda a mãe que nos relata usar o leite materno para tratar erupções de pele do bebê, com sucesso. Não busca pomada ou qualquer outro medicamento.

As mulheres que participam da roda produzem conhecimento que transmitidos se multiplicam em aprendizado e enriquecem a cultura da maternidade. As mães da Roda fazem ciência.

 

Bibliografia

Santos, Boaventura de Souza. O fim do Império Cognitivo. A afirmação das epistemologias do Sul. São Paulo, Autêntica. 2019

Silva, Marcos Antonio da. A técnica de observação nas ciências humanas. Educativa, Goiânia, V.16, numero 2, p 413-423 jul/dez 2013.

Eva Wongtschowski é psicanalista, participa das Rodas de Conversa do Gamp21 e realiza atendimento clínico, presencial e online.